Na Antroposofia nós temos a festa de Micael, a comemoração da época do Arcanjo Micael, como uma das quatro principais comemorações anuais: Páscoa, João, Micael e Natal. Estas são as principais festas do ano e são as quatro épocas anuais relacionadas com as estações do ano e com as disposições anímicas humanas.
Micael sempre me ocupou, sempre esteve presente, embora um tanto incompreensível, porém presente. É sua oração que me vem à mente todas as manhãs e todas as noites. E nos momentos de perplexidade, incompreensão, fraqueza, impotência, dúvida e desânimo, bem como nos momentos de entusiasmo, certeza, gratidão, leveza, o que me vem à cabeça é:
“tudo o que vier nos será dado por uma direção mundial plena de sabedoria […] viver com pura confiança, sem qualquer segurança na existência; confiança na ajuda sempre presente do mundo espiritual”.
Quase como um mantra e, ao mesmo tempo, uma resignação e gratidão profundos e a sensação de que é assim.
Que força é essa? Que certeza é essa que surge e nos arrebata sem que consigamos compreendê-la, apreendê-la. E que, ao invés de nos permitir relegá-la ao abstrato, místico, metafísico, esotérico, nos deixando adorá-la como algo acima de nossa capacidade compreensiva, pelo contrário, nos puxa para a consciência nos impondo a pergunta: como posso me aproximar, como posso conhecer e apreender seu significado?
É um Mistério que exerce uma atração tão grande. É uma força objetiva, é um verso exato, que se comprova na existência, mas que não conseguimos abarcar com a nossa compreensão, apenas sentir e confirmar sua certeza nos acontecimentos da vida e se, especialmente se, nós entendemos estes versos como uma resposta às nossas ações, vivendo e agindo com coragem e confiança de que a Providência se move e responde aos nossos atos, ao invés de os entendermos como uma fatalidade do destino e nos entregarmos passivamente a isto.
Ainda assim e, até mais, a Festa de Micael, a época de Micael é impalpável, é muito difícil de compreender, escapa aos nossos maiores esforços, mas cada vez mais nos atrai.
Dentre as quatro principais celebrações, a Festa de Micael é a mais difícil de se compreender e vincular. Talvez por ser a única que não tem um acontecimento histórico material que nos forneça uma imagem na qual nos inspiremos para compreendê-la. Todas as outras possuem representações “reais” nas quais podemos nos ancorar para nos inspirar: o Natal tem o milagre de um nascimento, a Páscoa tem o Mistério do Gólgota e os ciclos da vida na natureza e João tem o batismo. Todos os três estão descritos nos Evangelhos, sendo também marcos históricos. Portanto temos a possibilidade de, ao contemplar as imagens e as histórias, entrar em contato com seu significado transcendente.
A Festa de Micael, por outro lado, não nos fornece nenhuma conexão com o mundo material, palpável. Micael é um Arcanjo, portanto um ser que escapa à nossa percepção, não vemos arcanjos voando por aí, não temos certeza da existência deles, só podemos fazer uma imagem deles através do que nos contam as grandes cognições e Mistérios e mesmo assim, acreditar sem ver e sem comprovar; é Guardião da Inteligência Cósmica, nossa atual percepção cognitiva tem muita dificuldade para admitir a existência de uma inteligência além da humana; subjuga o dragão – não mata, subjuga, domina. Dragão? Este animal não existe. Não é serpente, não é mamífero, não é dinossauro e nem é um demônio, que, apesar de inexistente também, pode ser pensado da mesma forma que podemos pensar o Arcanjo, mas é um dragão! Um ser mitológico formidável que está relacionado com destruição, fogo, morte, medo, mas também sabedoria, origem, mistério, longevidade, primordial.
Como se aproximar, ou melhor, como celebrar algo tão intangível? Como ver e se aproximar do significado do que estamos celebrando?
Nas minhas reflexões o que eu pude entender foi que justamente isto é o que deve ser celebrado: o esforço para abarcar o significado imaginativo, inspirativo e intuitivo de Micael. Exatamente porque não temos âncora em um objeto, ser ou evento do mundo físico, temos que ter a coragem de fazer o esforço para penetrar neste significado com todas as nossas forças, mas também com todas as nossas dúvidas, medos, anseios. Não simplesmente deixarmos a imagem ressoar, mas nos relacionarmos com essa imagem para que ela se revele. E, quanto mais ela se revelar, mais profundos mistérios surgirão; os medos podem aumentar, mas teremos que fortalecer nossa vontade e coragem para continuar. Assim, Micael poderá nos responder. Ao contemplarmos a imagem as perguntas surgirão e, quanto mais verdadeiros formos, mais iremos atrás das respostas: estudando, pintando, esculpindo, observando o mundo, as pessoas e as relações.
Rudolf Steiner nos conta que, em tempos primordiais, antes do homem e dos animais habitarem o mundo físico, seres elevados quiseram antecipar sua evolução e adquirir a liberdade, se separando da vontade divina. Micael, da mesma hierarquia destes seres, foi quem liderou o exército composto pelos arcanjos que se mantiveram unidos à vontade divina e que subjugou o exército rebelde que, por ter se separado não podia voltar ao mundo espiritual, portanto foi precipitado ao mundo material que se formava, mas que, no entanto, também não fazia parte deste mundo e teve que ser mantido em uma forma intermediária de um ser que não viria a existir na Terra e que tampouco existia no mundo divino. Esta forma, este ser é o dragão. Ele vive no mundo terreno, mas não possui existência terrena. Com o passar da evolução o homem veio a habitar a Terra em um corpo material. O ser humano é a hierarquia destinada a desenvolver a liberdade, portanto é um ser espiritual, mas que possui uma existência material na Terra, sendo, portanto, um ser de dois mundos.
Como ser espiritual ele se desenvolve no sentido de adquirir consciência e se religar, livremente e responsavelmente, através do amor, à sua origem espiritual.
Como ser terreno ele se desenvolve no sentido de perceber e compreender a sabedoria cósmica que se reflete no mundo natural material, reincorporando desta forma, este mundo terreno à sua fonte espiritual primordial.
Nesta jornada o homem se aproxima do mundo terreno percebendo, se alimentando e respirando este mundo. Neste mundo, de forma não material, vive o dragão. O ser humano, ao se apropriar do mundo terreno, interioriza também o dragão, que se manifesta na forma de apetites, desejos e atos animalizados, inferiores. Com a existência humana na Terra e a possibilidade do homem transformar a natureza em espírito novamente, libertando a essência que está refletida nela, surgiu a possibilidade também do homem libertar o dragão que existe, mas não está manifesto. Ao ingerirmos o mundo, ingerimos também o dragão e, cabe a nós escolhermos sermos seres meramente materiais, nos deixando levar pelos instintos e desejos que se libertam em nós ou sermos seres que reconhecemos nossa existência divino-espiritual e também nossa existência material, tornando-nos transformadores do mundo e do dragão, de forma a redimi-los e religá-los ao espírito, libertando-os e, desta forma, integrando estes dois mundos que se encontram separados.
Este é o chamado e o significado de Micael: perceber e conhecer de forma muito concreta o mundo objetivo material, bem como nossos instintos e desejos mais inferiores, reconhecendo-os como separados da centelha divina que os criou: os primeiros como um reflexo no qual o mundo divino está espelhado, portanto como um espelho onde podemos perceber novamente o espírito que nele habita através de uma aproximação reverente e transformadora; os segundos como seres separados, portanto aguardando que nossa percepção interior os revele, os reconheça como desejos que se expressam de forma inferior porque necessitam de reconexão e os religuem à sua origem espiritual, através do amor e da autocompreensão.
Este é um chamado à consciência e à cognição.
É um chamado sério, grave, reverente. É um chamado interno, um chamado para uma cognição interior, para um olhar para dentro, para uma percepção autoconsciente, para uma percepção que não tem como âncora algo objetivo no mundo externo, mas que precisa encontrar sua própria âncora em algo objetivo, preciso, concreto, no mundo interno. Um chamado para a vontade humana, para que os homens, por livre vontade, tenham coragem para adentrar e reconhecer seus mais inferiores e animalescos desejos, para encarar suas sombras e demônios internos e amá-los, reconhecendo-os como parte de sua história e reintegrando-os à sua verdadeira missão e vocação. E, a partir disto, olhar para fora, para os outros homens, para sua comunidade, reconhecendo também as sombras dos demais, mas principalmente, Cristo nos demais, este ser elevadíssimo que habita em cada um de nós, aguardando para ser reconhecido e chamado à superfície de cada ser.
O chamado Micaélico é o chamado da Verdade, da Inteligência Cósmica, aquele que reconhece o Ser Crístico que pode integrar o dragão em cada homem, em cada encontro que tenhamos, em cada reunião de seres humanos. E este reconhecimento é o que pode conclamar as forças crísticas a atuarem em conjunto em cada comunidade, em cada encontro. Micael nos mostra que, enquanto não formos capazes de reconhecer o dragão, ele nos dominará. A partir do momento em que olharmos para nossos instintos, percebendo neles sua verdadeira face de anseio pela reconexão e reconhecendo neles o dragão que permitimos que atue em nós, não nos deixaremos mais dominar por eles, mas teremos força para convocar o Cristo em nós, a força Micaélica que convoca o Cristo em nós e domina e redime o dragão.
Quero terminar com uma reflexão para os Aconselhadores Biográficos: qual é a força que cada um de nós convoca para ajudar nossos clientes? Qual é o chamado que traz Micael para o encontro com nossos clientes? Não é a percepção de que aquela pessoa que está na nossa frente é muito mais do que as qualidades e defeitos que nela se apresentam? Não é a percepção de que cada biografia é uma luta sagrada em busca do domínio dos dragões? E a percepção mais sagrada ainda de que há muitas forças internas em constante luta na busca do equilíbrio, da saúde, da harmonia? Vamos olhar nossos clientes como o palco onde todos estes conflitos se desenrolam e no qual, só uma convocação muito consciente e amorosa pode trazer o Eu superior de cada um para assumir as rédeas e tomar a lança Micaélica que vai dominar os dragões interiores para integrá-los e transformá-los. Nós somos os agentes desta convocação.
Vamos honrar nosso papel e nos tornarmos ativa e conscientemente micaelitas nos nossos encontros com nossos clientes e, se possível, em cada encontro em nossas vidas, a começar pelo encontro com meu próprio EU.