Acabou a aula, saímos todos da sala e caminhamos para o refeitório. Acima de nossas cabeças ouço Vênus e Lua me chamando para testemunhar a troca de luzes no céu: os vermelhos azulados que seguem o sol já escondido e, mais acima, no azul ainda iluminado pelos teimosos raios solares que rompem o princípio da escuridão, as duas Deusas anunciam sua vitória com seu brilho sobrepondo as últimas forças do astro-rei, exausto após sua magnífica jornada pela abóbada celeste refrescando-se nas sombras do crepúsculo.
Como poderíamos imaginar, nesta imersão, neste lindo lugar, que a ameaça que rondava o mundo lá fora se faria cada vez maior e nos impossibilitaria de nos encontrarmos de novo por muito tempo…
No quarto da pousada, buscando o melhor sinal de Wi-Fi, consigo me comunicar com a família, muitos quilômetros distante. Aqui, neste paraíso próximo a Buenos Aires, a epidemia que se espalha velozmente parece quase inatingível, nenhum caso ainda registrado na América do Sul, no entanto, a voz alarmada do marido que suplica: – “Cuidado no aeroporto na volta! Máscara! Não fala com ninguém, não toca em nada!” – Quase um oráculo do que viria a acontecer alguns dias depois de meu retorno para casa. E eu, inebriada com a liberdade da natureza, a beleza do céu e o calor dos encontros com velhos e novos amigos, companheiros em aprendizados e realizações.
Volta ao Brasil. Nas ruas, no aeroporto, em casa: clima tenso, suspensão, expectativa. De que? Por que? Não se sabe, apenas a espera, a tensão por algo que está por vir, mas que não se mostra por completo: Corona vírus; Covid-19: mortes na China, epidemia na Itália, na Espanha, na Europa… espera ameaçadora no Brasil e no mundo.
Ainda não é tempo de parar e nem quero! Há muito a fazer! Cuidado para não expor os mais velhos e, vida que segue! Início de março de 2020. Enquanto sigo dando cursos no Rio de Janeiro e em São Paulo, surgem os primeiros casos no Brasil e na Argentina. Fico gripada. Ao mesmo tempo, começa o isolamento social e eu, que precisava parar para me cuidar, mas não parei voluntariamente, sou obrigada a isso.
Quaresma – quarentena. Isolamento social: como todo mundo, obrigada a conviver comigo mesma. A quaresma se impõe, o período de quarenta dias entre o Carnaval e a Páscoa, período de introspecção e reflexão que prepara o encontro com o próprio Eu, com a ressurreição do divino em cada um, desrespeitado por um excesso de trabalho inebriante, se faz agora perceber e respeitar com o advento de uma doença desconhecida, ameaçadora, fatal. Lá fora, no entanto cada vez mais próxima das nossas casas, quase batendo nas nossas portas! – “Fique em casa! Não tenha contato com nada, com ninguém! Não toque! Não respire sem proteção!” – Corona lá fora. E eu, sem coroa aqui dentro: minha realeza, minha própria individualidade fragilizada anímica e fisicamente. Depois da gripe, alergia. E, com ela, um torpor medicamentoso, um feitiço moderno que me mantém na semiconsciência do sonho. Mais uma imposição de descanso, de cuidar de mim mesma, de parar de olhar para fora e respeitar a quaresma desrespeitada. Vencida, me entrego. Primeiro a Gandalf que me leva à Terra Média, onde homens valorosos formam uma comunidade com elfos, semideuses, magos, seres de outros reinos, anões e hobbits na luta contra os poderes do mal que vem se impondo sobre o mundo através do medo e da opressão. Sigo e os elfos me levam mais longe no tempo até a formação do mundo pelos deuses, antes da Primeira Era, quando Ilúvatar pediu aos Ainur que cantassem a canção que deu existência ao mundo, a canção com acordes consonantes e dissonantes que deram origem à beleza, à verdade e à bondade, mas também à escuridão e ao mal, à dualidade que, desde o princípio dos tempos, se impõe nos questionando: – “Quem é você?”; “Você se conhece?” – Perguntas que agora, mais fortes e mais potentes se fazem neste período de solidão forçada, de Quaresma que se faz respeitar. Ainda não estou pronta para acordar, mas após ouvir a canção venho cada vez mais para perto no tempo e me deixo levar por Morgana para Avalon e Camelot, onde semideuses já não estão mais presentes fisicamente, tampouco criaturas míticas como hobbits e Ents, mas há seres humanos valorosos que possuem contato com os desígnios divinos e guiam a humanidade na busca do Graal, do encontro com a individualidade cada vez mais consciente, mas ainda frágil. Homens e mulheres coroados: reis, rainhas, religiosos, druidas e sacerdotisas. Todos na luta contra a dualidade do mal que segue se impondo através de medo e opressão, mas que usa agora novos servos e ferramentas: não mais orcs e seres míticos, mas seres humanos.
Muito mais difícil se torna discriminar bem e mal; a escolha a quem seguir, uma vez que os mesmos tipos de seres servem a um ou a outro e a distinção não está mais na face, no externo, mas nos pensamentos e ações de cada homem ou mulher, portanto, cada vez mais há que se buscar internamente a percepção moral para escolher que caminho trilhar e quem seguir.
A coroa pode indicar quem tem o ouro da sabedoria e é capaz de tomar decisões livres, guiando a humanidade em direção à autoconsciência, independente dos desígnios da Grande Deusa e dos Deuses que nos manteriam puros, porém inconscientes e dependentes. A coroa pode também estar sobre a cabeça de servidores desses Deuses mantenedores da inconsciência da humanidade que nos aprisionariam a desígnios externos. A liberdade traz possibilidades de atuar a partir de nós próprios, mas tem o risco de errarmos e precisa estar acompanhada de responsabilidade para lidar com as consequências de nossos atos livres. Nesta atmosfera de castelos, duelos, busca do Graal, conquistas dos cavaleiros para honrar suas damas e magias, sigo na luta por introspecção, por um olhar para dentro, um confronto comigo mesma. Cada vez mais sou guiada para, de fato, me enfrentar.
Finalmente é hora de acordar. Enquanto amigos e familiares têm notícias através de meu marido, eu nem sei o que acontece no mundo, dias e dias trilhando a jornada interior até o início da evolução humana, quando os deuses tiveram a ideia da criação, e de volta até o momento em que deuses e reis não mais podem nos guiar e temos que fazer isso por nós próprios. A pergunta que se impõe desde o início dos tempos, torna-se agora um encontro com a esfinge interior: Quem sou eu?
Acordo e vejo que o mal segue tentando se impor através do medo e da opressão. Hoje, quando dirigentes já não são mais capazes de nos guiar, mas ainda há homens e mulheres que detém poder para decidir o que as sociedades devem ou não fazer e como se relacionar, não mais guiados por uma conexão com uma sabedoria divina, mas através da própria consciência de autopercepção e de percepção social, não mais podemos nos entregar cega e confiantemente, cada um de nós tem também que fortalecer a própria individualidade através da autoconsciência e autoconhecimento para poder atuar no mundo e escolher livremente o que fazer, quem e em que pontos seguir.
Após a quaresma imposta pela fragilidade corpórea, acordo para mim mesma e para o caos de duas, quase três semanas iniciais de isolamento social. A impotência diante das imposições externas que trazem o cuidado com a saúde e o caos econômico e social, lentamente vai sendo substituída por uma percepção da oportunidade de uma mudança de consciência social, uma mudança de paradigma nas relações, onde uma economia mais fraterna pode surgir, bem como um cuidado ambiental consciente, pesando necessidades e capacidades humanas com necessidades e recursos da natureza. Porém, a percepção das oportunidades vem acompanhada da atenção à possibilidade de alguns perigos, como o aumento do egoísmo, uma vez que não há mais contato e “obrigação” ou oportunidade de encontrar os outros; os contatos agora devem ser remotos, as relações, para existirem, têm que ser nutridas pela “rede”: há um intermediário não vivo entre as pessoas e, contatos com vivos, quando estritamente necessários, são intermediados por máscaras e sem toque. O calor da vida se faz cada vez mais ausente nas relações. Como encontrar agora este calor, manter as relações vivas, impedir a morte pela frieza das comunicações só por obrigação e facilidade de evitar o contato caloroso humano? Como não se deixar arrastar pelo medo opressivo da doença e da morte que nos arrasta cada vez mais para o isolamento: primeiro obrigatório, pelo comando das autoridades dirigentes, depois voluntário, pela conveniência do evitamento do contágio e do peso da responsabilidade da autorreflexão que leva à necessidade de tomar decisões livres, mas que trazem consequências? Como evitar o embotamento da individualidade que leva à entrega passiva aos desígnios dos outros?
Aos poucos, me entrego às possibilidades de reconexão: webinares, reuniões virtuais, trabalho via internet. E o monstro do embotamento da consciência vem se aproximando disfarçadamente através de um encantamento com as possibilidades que o mundo virtual traz, encantamento que vai nos aprisionando ao computador e, se não tomarmos cuidado, nos desconectamos de nós próprios de novo e, nem percebemos o cansaço e a desvitalização pelo esforço em transformar uma conexão artificial em um contato verdadeiro ou em ter a ilusão do contato verdadeiro.
E os astros, que tanto me encantaram no início deste texto, onde estão? Como pude deixar de ouvi-los? Neste período a Lua passou por muitas fases e caminhou muito no céu. Vênus se deslocou e se fez cada dia mais brilhante. O Sol se fez presente todos os dias, mas não sei precisar se os dias estavam mais limpos ou mais nublados. Só a partir de meu despertar após minha jornada mítica de ida e volta ao princípio dos tempos é que voltei a ouvir estrelas.
Percebi que elas continuam majestosas no céu, prontas a dar-nos notícias, se quisermos prestar atenção nelas. E tive dias e noites em que novamente me encantei com o céu, sabendo que temos que olhar para o alto, mas sem esquecer de olhar para dentro e, muito menos de olhar para os lados!
Estar presente em mim, conectar-me comigo mesma, manter a essência divina individual brilhando conscientemente dentro de mim, ao mesmo tempo em que olho ao meu redor e conecto-me com o que vive na comunidade e na sociedade como um todo, percebendo que, além de nós, seres humanos, há a natureza e o cosmo que interagem conosco e que têm suas leis que devem ser respeitadas, mas que, principalmente, nos contam segredos maravilhosos sobre nós próprios. Assim venho passando o período de isolamento social: buscando conexões verdadeiras comigo mesma, com os outros, com a comunidade, com a sociedade e com a natureza e os astros, de forma integrada, sem precisar novamente me distanciar de uns para poder me aproximar de outros. Assim, espero que eu possa ter cada vez mais consciência nas minhas escolhas, mesmo que sejam contrárias ao que eu penso ou contrárias ao que o mundo espera de mim, pois, independentemente do que eu faço ou deixo de fazer, o importante é que eu saiba porque estou fazendo e que, por mais que muitas vezes tenha que optar por decisões sociais estejam elas ou não de acordo com o que eu penso e, da mesma forma, outras vezes tenho que tomar decisões individuais, independentemente do que socialmente se decida, se eu me mantiver atenta e consciente tanto da minha individualidade quanto da coletividade, poderei decidir em bases sólidas e responsabilizar-me pelas consequências.
Após a quaresma, chegou o momento da Páscoa, a ressurreição do ser divino que existe em mim, que existe em cada um de nós. E sinto que toda esta jornada trouxe um olhar cada vez mais acordado e atento. A mim, aos outros, ao mundo. Que a chama do ser divino de cada um se mantenha acesa e nos aqueça com atenção e amor.